4 de agosto de 2010

"Janela indiscreta" revela grande momento do mestre do suspense


No suspense de Hitchcock e no filme brasileiro "O outro lado da rua", voyerismo, solidão e assassinatos compõem o cenário das grandes cidades.

Por: Iomar Travaglin

James Stewart e Grace Kelly em cena do filme "Janela indiscreta"
Considerado por muitos como o melhor filme do mestre do suspense, Alfred Hitchcock (1899-1980), Janela indiscreta (1954) serviu de inspiração para muitas produções posteriores. Baseado no romance de Cornell Woolrich, o roteiro foi concebido pelo próprio diretor e seu assistente, John Michael Hayes, e acrescenta à obra o romance vivido por James Stewart e Grace Kelly, fato inexistente na história original. O filme versa sobre um fotógrafo com a perna engessada, Stewart, que da janela de seu apartamento presencia o que supõe ser um assassinato. Com a ajuda da namorada e de uma enfermeira, vivida pela atriz Thelma Ritter, ele tenta provar o suposto crime. O filme se passa em um conjunto de prédios de apartamento (fig.1), onde o protagonista entediado passa seus dias observando os vizinhos.

Todo o cenário foi concebido especialmente para o filme e os apartamentos oferecem situações que passam do cômico para o drama. Com ótimos diálogos e sugestivas discussões sobre relacionamento marido e mulher, o suspense presenteia o telespectador com um dos roteiros mais inteligentes já vistos. Elenco seguro e versátil, situações inusitadas e clima de constantes descobertas fazem da obra uma referência do gênero. Repare na cena de entrada de Grace Kelly em close – revelando ser uma das atrizes mais bonitas da história do cinema –, na discussão do personagem de Thelma Ritter com Stewart sobre o amor e na cena final, quando Grace abandona seu lado "dondoca". Atenção também para o discurso sobre a morte de um animal de estimação, em elucidativa cena sobre o convívio dos personagens.

Aliando humor, suspense, sensualidade e até questões sociais hoje muito discutidas, o filme reverencia a melhor fase do diretor que, em suas costumeiras aparições, surge em um breve momento dando cordas no relógio do apartamento do músico, como um dos muitos personagens do filme.

Hitchcock e o suspense
O suspense sempre fez parte dos roteiros cinematográficos. Para prender a atenção do espectador, foram criados estilos e narrativas que inovaram a linguagem e a própria historia do cinema. No caso dos filmes de Alfred Hitchcock, seu estilo pessoal prevaleceu e, esse estilo, é hoje considerado uma variação do cinema noir, que esteve no auge nas décadas de 30 e 40. O claro-escuro, personagens ambíguos, loiras fatais, reviravoltas, diálogos inteligentes e existencialistas são as principais características do cinema noir.

Em seus filmes, o mestre do suspense sempre exigia que tudo fosse realizado com extrema precisão. Sua linguagem revela muito pela imagem. No começo de Janela indiscreta sabe-se, por exemplo, que James Stewart é fotojornalista e está com a perna engessada por causa de um acidente, pelo longo plano-sequência no qual aparecem a máquina fotográfica quebrada na mesa, fotos nas paredes, e ainda pelos negativos junto às revistas. Como o diretor iniciou sua carreira durante o cinema mudo, explora as imagens explicando-as com a câmera, sem diálogos.

Janela indiscreta e o filme brasileiro O outro lado da rua
Atualmente, é comum assistir filmes que se assemelham a outros ou remakes – refilmagens produzidas com moldes modernos. Não posso afirmar se O outro lado da rua, filme de Marcos Bernstein, é propositalmente realizado com base em Janela indiscreta, mas possuem muitos pontos em comum. O filme, protagonizado por Fernanda Montenegro e Raul Cortez, dois grandes atores do teatro e da televisão, fala da solidão e da observação de vizinhos. Nesta produção, também existe a suspeita de um assassinato e a mania do uso de binóculos.

O roteiro se sustenta no elenco principal com uma bonita história de amor entre os personagens de Fernanda e Cortez. Ela faz um personagem dúbio e, às vezes, desagradável, de uma senhora que vive só em um apartamento e, durante a noite, trabalha como informante da polícia. Repare na bela cena de amor entre os personagens e na participação da atriz Laura Cardoso, sempre marcante.
Entre os dois filmes, com intervalos de cinqüenta anos, levando-se em conta a diferença de cultura, é fácil notar a atualidade do tema e a influência do meio no comportamento, levando o ser humano, quando existe oportunidade, a "bisbilhotar" e interferir na vida alheia.

As grandes cidades e o voyer
O estudo do estar só em espaços densamente povoados é relativamente recente e corresponde à analise psicológica das cidades e do consumismo, que levaria o homem a individualidade e a conseqüente "solidão social". Tanto Karl Marx como Charles Baudelaire, teóricos do século 19 e Marshall McLuhan, no século 20, escreveram obras que remetem à análise social e às influencias do consumo e da comunicação, gerando inusitadas situações urbanas modernas. Porém, fechando um pouco a questão, as cidades e o voyerismo estão ligados ao fato da aglomeração urbana, que, nos filmes é ressaltado pelos apartamentos e visibilidade alheia. A televisão, ultimamente, explora muito essa situação e a obra de George Orwell, 1984, é marcante e, de certa forma, pioneira, antecipando, no final da década de 40, o atual Big Brother.

A exposição ou violação de privacidade no filme tem sua centralização na figura do voyer, que é aquele que observa outras pessoas e pode ter uma conotação sexual. Já flâneur, termo estudado por Walter Benjamin na obra de Baudelaire, é aquele que não apenas observa, mas também interage como parte da paisagem. Ou seja, não fica "escondido", além de não ter a conotação sexual. Estes temas podem parecer distantes e muito filosóficos, mas nos fazem entender determinados comportamentos que, com a ajuda da imagem cinematográfica, podem ser compreendidos e analisados. Na bibliografia coloco alguns livros que podem dar continuidade ao assunto.

A arquitetura das cidades nos filmes
As cidades como metrópole e o cinema surgiram praticamente juntos. A partir do século 19, as cidades, sob influência da Revolução Industrial, passaram a ser o centro do que hoje conhecemos como aglomerados urbanos. Construções cada vez mais altas já eram projetadas como sinal de poder e centralização. A cidade de São Paulo, por exemplo, impulsionada pela crescente industrialização e migração ao fluxo urbano, passou de uma população média de 44.000 habitantes em 1886, para 64.000, em meados de 1890. Até que em 1920 constatou-se a existência de 579.000 habitantes.

No caso do cinema, podemos perceber o quanto esse fato colaborou para formalização de idéias, personagens e teorias sociais. No filme Metrópolis (1927), de Fritz Lang, a concepção visual da cidade é um futurismo, aceito hoje como normal. Assim como as teorias que fizeram deste filme um precursor de estudos sociológicos, a concepção histórica da cidade retratada influenciou muitas outras idéias que até hoje são utilizadas para estudos sociais e cinematográficos.

Metrópolis pode ser considerado o "pai" do cinema de ficção. Foi e continua sendo referência de obra com fundo social, pois o autor, inspirado pela silhueta de edifícios americanos, construiu uma metáfora sobre a dominação da máquina e do homem. Outro exemplo famoso é o filme Blade runner, o caçador de andróides, de Ridley Scott, produzido em 1982. Nesta produção, o futurismo é realçado através de uma arquitetura urbanística igualmente repressora. A obra versa sobre andróides e cidades vencidas pela tecnologia e a decadência. O "realismo italiano", difundido e igualmente copiado, contrapõe essa idéia da obra cinematográfica ficcional, pois, esta escola possibilitou colocar a imagem como registro histórico, utilizando para isto cenários reais. Roma, cidade aberta, filme produzido em 1945 e dirigido por Roberto Rossellini, é seu exemplo mais importante.

Recentemente, o filme Encontros e desencontros, de Sofia Coppola, aborda, de forma contundente, a semelhança estética e existencial com os cenários do filme Blade runner, embora seus roteiros nada tenham em comum. O brasileiro Contra todos, de 2004, de Roberto Moreira, apresenta a dura realidade da periferia de São Paulo em cenários que formalizam a proposta do filme. Ambas as produções mostram a opressão da cidade frente a uma realidade imutável que acaba levando o ser humano a uma condição de passividade e total desamparo.

A arte retratando cidades e comportamentos
Podemos ter a noção de uma Londres na época de Jack, o estripador, assistindo o filme Do inferno, de 2001 e dirigido por Albert e Allen Hughes. História, aliás, lançada também com muito sucesso no formato de história em quadrinhos. Vale ver também a Nova York da década de 50 através da obra do cartunista Will Eisner (1917-2005) (fig.2), pelas pinturas de Edward Hooper (1882-1967) e, ainda, a São Paulo pelas pinturas de Gregório Gruber. No entanto, descobrir um assassino por suas pinturas é ao menos inusitado.  No filme Do inferno, ficção estrelada por Johnny Deep, é narrada a suposta identidade do famoso Jack o Estripador. Jack foi o misterioso assassino que vitimou, segundo a polícia da época, cinco prostitutas na parte mais pobre de Londres, chamada de East End. Nesta região, os crimes chamaram a atenção de uma sociedade que não se incomodava com a saúde e muito menos com a segurança da parte pobre da população. Nos míseros prédios da área citada, era comum sete ou oito pessoas compartilharem um cômodo, não restando alternativas às jovens que, devido à extrema falta de recursos, partiam para a prostituição.

 Nos 118 anos depois dos fatos, nunca se conseguiu saber a identidade do assassino, embora existam vários suspeitos, sendo alguns ilustres, como o duque de Clarence, neto da Rainha Vitória. Porém, uma escritora e repórter policial, Patricia Cornwell, no melhor estilo CSI, investigou o caso e chegou à conclusão que o assassino era o pintor vitoriano Walter Sickert (1860-1942) (fig. 3).

Para viabilizar sua investigação, Patrícia gastou cerca de R$ 4 milhões de sua fortuna pessoal. A idéia partiu de uma visita realizada por ela à Scotland Yard, verificando que o caso de Jack era o grande fracasso da instituição e que nunca havia sido investigado com tecnologia de ponta. Com acesso a antigos documentos e correspondência anônima do assassino com a policia, ela descobriu que os papéis tinham a mesma marca d´água que o pintor utilizava. Para ir mais adiante, chegou a comprar pinturas e gravuras do autor (fig.4), avaliadas em R$ 70 mil, somente para destruí-las, em busca de impressão digital e vestígios de DNA. Isto porque, ao pintar, Sickert possuía o costume de molhar a tinta na saliva.

Por meio da investigação, a escritora chegou às seguintes conclusões: os desenhos encontrados no livro de hóspedes na pensão onde morava o pintor são semelhantes aos que Jack usava muitas vezes; as iniciais utilizadas por Sickert eram grafadas da mesma maneira que as letras nos bilhetes do assassino, que confirmava possuir conhecimentos e técnicas de pintura ao redigir os textos com pincel. Além disso, em uma das cartas, traiu-se utilizando o pseudônimo de Mr. Nobody, o mesmo que o pintor usava.
Todo o processo de investigação se encontra em livro escrito por Patricia, muito criticada por apresentar evidencias que, mesmo em alguns momentos plausíveis, não provam a culpa do pintor. Nas pesquisas realizadas, ela descobriu que o suspeito era um pai repressivo, inquieto e misógino (que tem aversão às mulheres), indicando sua conduta como a de um serial killer. As críticas mais ferozes ao livro surgiram principalmente pelo fato da escritora ter destruído obras de arte para supor provas que não poderiam ser eventualmente confirmadas, já que Sickert foi cremado, impossibilitando a confirmação do DNA.

Concluímos que esta fascinante investigação, conduzida pelo processo histórico e psicológico, mostra que, mesmo após tanto tempo, é possível chegar a conclusões comportamentais da época. No entanto, a identidade criminal que a autora e criminalista como um “voyer”, tentou desvendar, continua insolúvel.


Cartaz do filme "Janela Indiscreta"
Cartaz do filme "O outro lado da rua"
Alfred Hitchcock no set de filmagem do filme "Janela Indiscreta" (fig.1)
New York Tenement Buildings, Will Eisner (1980) (fig.2)
Walter Richard Sickert (fig.3)
Belvedere Bath, obra de Walter Richard Sickert (fig.4)

Livros e filmes sobre o assunto

EISNER, Will. New York: a grande cidade. 2. ed. São Paulo : M. Fontes , 1990. 139 p. il. (Fetiche). Por.
  
RENNER, Rolf Gunter. Edward Hopper 1882-1967: Transformações do Real. Koln : Taschen, 1992. 95 p. il. Por.
 
HUMPHRIES, Patrick. The films of Alfred Hitchcock. New Jersey: Crescent Books, 1994. 192 p. il. Ing.
 
BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e simulação.
Lisboa: Relógio D'agua, 1991. 201 p. (Antropos). Por.
 
CANETTI, Elias. Massa e poder. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. 487 p. Por.
 
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense,1997. 253 p. (Obras escolhidas, 3). Por.
 
MINC, Alain. A nova Idade Média. São Paulo: Ática, 1994. 199 p.
SADOUL, Georges. História do cinema mundial das origens aos nossos dias. Lisboa: Horizonte, 1983. 213 p. Por.
 
ORWELL, George. 1984. 24 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2000. 277 p. (Biblioteca do espírito moderno, 24). Por.

Metropolis
Título Original: Metropolis
País de origem: Alemanha
Ano: 1927
Duração: 100 min
Direção: Fritz Lang

Roma, cidade aberta
Título Original:
Roma, città aperta
País de Origem: Itália
Ano: 1945
Duração: 98 min.
Direçãão: Roberto Rosselini

Janela Indiscreta
Título Original:
Rear Window
País de origem: EUA
Ano: 1954
Duração: 107 min
Direção: Alfred Hitchcock

Blade Runner, o caçador de andróides
Título Original:
Blade Runner
País de origem: EUA
Ano: 1982
Duração: 118 min
Direção: Ridley Scott

Do inferno
Título Original:
From Hell
País de origem: EUA
Ano: 2001
Duração: 137 minutos
Direção: Albert  e Allen Hughes

Encontros e desencontros
Título Original: Lost in Translation
País de origem: EUA
Ano: 2003
Duração: 105 min
Direção: Sofia Coppola

O outro lado da rua
Título Original: O Outro Lado da Rua
País de origem: Brasil
Ano: 2004
Duração: 97 min
Direção: Marcos Bernstein

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