9 de março de 2011

Os mecanismos históricos da censura e comentário sobre o filme "O outro lado de Hollywood"

Por  Iomar Travaglin

A festa do Oscar, questionável em alguns aspectos, é hoje um símbolo da excelência na interpretação e processos técnicos que permeiam a indústria cinematográfica americana. Embora os temas hoje sejam vistos de forma mais livre, houve tempo em que um filme como O segredo de Brokeback Mountain, de Ang Lee, não teria a repercussão que tem hoje por abordar um tema considerado proibido por códigos do sistema dos estúdios. Esse é o assunto abordado neste interessante documentário chamado no Brasil de "O outro lado de Hollywood" com o intuito de mostrar como o sistema da época ainda recente tenta coibir e até mesmo proibir o que chamavam de “excessos”.

O outro lado de Hollywood
Título original: The Celluloid in closet Ano: 1996
O documentário, dirigido e escrito por Rob Epstein e Jeffrey Friedman, baseado no livro de Vito Russo apresenta imagens históricas do início de um cinema que ainda não se preocupava com a censura e analisa a evolução do processo de proibição que o cinema engajado tentava contornar com criatividade. É o caso do filme "Bem Hur", dirigido por William Wyler e produzido em 1959. Segundo o roteirista, Gore Vidal, o assunto pendia para uma trama não muito aceita pela sociedade de então e a idéia foi fazer um acerto com um dos atores.

O documentário faz alusão ao tratamento dado aos personagens travestidos e ao homossexualismo, mas no geral vai além disso, aborda assuntos que tem a premissa do proibido. Importante registro para entender os mecanismos que compõem as escolhas e o tratamento dado a roteiros e personagens que incomodavam de forma não muito clara os estúdios americanos. Possui cenas interessantes com Charles Chaplin, O Gordo e magro e muitos astros e estrelas de Hollywood.

Atenção para o depoimento de Susan Sarandon e Tom Hanks mostrando como venceram os preconceitos dos estúdios nos filmes em que foram protagonistas, respectivamente de Fome de viver e Filadélfia.

A censura e as artes
Segundo o dicionário Houaiss “a censura atua sempre com base em critérios de caráter moral ou político, para decidir sobre a conveniência de serem liberados para apresentação ou exibição ao público em geral de toda atividade artística ou informativa”. A Censura tem sua maior força de atuação em regimes autoritários e religiosos. Vide a Inquisição, que atrasou em muitos anos o progresso da humanidade por vitimar estudiosos e pensadores.

A arte como manifestação social do homem está sujeita a julgamentos e nem sempre consegue sobreviver em determinadas situações. A moralidade que conhecemos vem de códigos de conduta geralmente associados à religião com normas no sentido de disciplinar e assim chegar à suposta perfeição. Claro que nestas questões estão associados valores políticos de dominação e persuasão que não nos compete julgar neste momento, mas, é importante uma reflexão sobre o assunto no que diz respeito ao mundo da arte.

O estudo desta matéria começa na Idade média que é o período que mais foi influenciado pela religião no sentido da representação e repressão ao corpo como objeto de admiração e prazer. Nas obras do período quase não se pintou a nudez e as imagens mostram corpos humanos com uma temática de sacrifício e miséria próprias do ser mortal.

Foi durante a última sessão do Concílio de Trento, em dezembro de 1563, que se debateu a arte sacra sem nada de “profano ou desonesto”. Muitos artistas sofreram perseguições e Calvino associou as imagens religiosas muito elaboradas à desonestidade, “as dissolutas de um bordel se enfeitam mais casta e modestamente do que as imagens das virgens no templo”, dizia.

Segundo manuais dos confessores da época, “ver é desejar, é pelos olhos que o pecado entra no coração”, e isto fazia com que a igreja combatesse a erotização dos corpos pelo controle das roupas, das danças e conseqüentemente da representação humana no campo da devoção, tentando com isto modelar um exemplo de religiosidade honesta, pudica e devota.

O que sabemos da pintura mural da Capela Sistina no Vaticano, hoje, é que se trata de uma obra prima, mas, em meados de 1549 seu autor Michelangelo Buonarotte, 1475-1564, foi considerado o inventor da “imundície”. O motivo, hoje banal, é a profusão dos corpos nus. O interessante é que se questionou os nus e não os atos que representavam. Em algumas imagens, o “o castigo da sodomia” na parte do inferno, as atitudes inusitadas para uma profusão de santos no paraíso e as “estranhas” frutas, nos painéis laterais, não foram lembradas (Fig. 1). O Afresco foi encomendado pelo papa Júlio II em 1508, Júlio morreu alguns meses após a conclusão do afresco e seu sucessor ameaçou destruir a capela, o que teria feito se a morte não o impedisse. Sucessores mais moderados porém, conseguiram o intento de pintar vestimentas nos nus considerados mais “ousados”.

Juízo Final, detalhe do afresco central. (Fig. 1)
Dentre muitas críticas que recebeu a mais célebre foi do mestre de cerimônias do Papa, Biagio da Cesana, que publicamente afirmou ser o afresco imoral, mais apropriado para “termas ou lugares mal afamados”. Esta afirmação, porém, custou caro ao pobre Biagio; em sua vingança Michelangelo pintou-o na parte do inferno, com traços de Minos, assistindo ao espetáculo, com uma grande serpente enrolada nas pernas, no meio de uma multidão de diabos (Fig.2).

Capela Sistina - Biagio de la Cesana no inferno (Detalhe. (Fig.2)
Alguns quadros “perseguidos”
Muitas obras estiveram censuradas aos longos dos séculos por diversos motivos, mas, como curiosidade, existem alguns exemplos interessantes. Na segunda metade do século XVI, a arte se ocupou do tema das Damas no banho, dos quase 40 quadros hoje existentes o mais famoso é Gabrielle d’Estress e sua irmã, 1595. Nele temos todos os artefatos do tema, que hoje não sabemos se era destinado aos maliciosos; as jóias, principalmente anéis, o cortinado, a empregada ao fundo, etc. mas, segundo historiadores mesmo na época eles teriam chocado. A certeza é que o século XVII destruiu muito deles por puritanismo. No século dezoito um quadro do aclamado pintor inglês Thomas Gainsborough 1727-1788, foi condenado simplesmente por apresentar a retratada com as pernas cruzadas, ato considerado vulgar e indecente. “Eu me sentiria muito mal vendo alguém que amo retratado de tal maneira”, teria observado uma dama inglesa ao observar o retrato. (Fig.3). Outro quadro mais recente, "Madame X", (Fig. 4), de John Singer Sargent, 1856-1925, pintado em 1894, foi alvo de comentários maldosos devido à ousadia do vestido e a cor nacarada da pele que realça a sensualidade do modelo. Este quadro que retrata a socialite Madame Gautreau, que no quadro era Madame X. Apesar do pseudônimo, foi reconhecida, e conta-se que sua mãe escreveu várias cartas implorando ao pintor que retirasse o quadro de exposição para que sua filha não fosse mais objeto de ridículo. Apesar do escândalo, o quadro fez fama ao pintor que recebeu muitas encomendas, incluindo o célebre Lorde Ribblesdale, 1902, cuja magnificência gerou muitas discussões sobre a supremacia da aristocracia inglesa. A historiadora Bárbara Tuchman escreveu algumas páginas ao quadro onde diz: “aquele homem (o quadro) tem a auto-suficiência de quem se sabe herdeiro de anos de civilização, mas não se trata de um melindroso que desconhece a barbárie, e sim de um credor da vitória sobre ela” e completa “não é um orgulho ofensivo, é uma satisfação que nos parece exclusiva pelo simples fato de que não pertencemos àquela estirpe”. A figura tem tal imponência que quando foi exibido no salão de Paris, Ribblesdale foi vê-lo, e a multidão começou a segui-lo pelos corredores e a apontar para “o grande diabo daquele Lord inglês”.

Thomas Gainsborough - Senhora Philip Thicknesse, Anne Ford, 1760. Óleo sobre tela. (Fig.3)


John Singer Sargent - Madame X. 1894. Óleo sobre tela. (Fig. 4)

A censura no Brasil
A censura pode estar ligada ao preconceito, mas, não é o tipo de análise que fazemos neste artigo embora os gêneros populares eram tratados, e ainda hoje são, numa relação “casa grande e senzala”. Na Velha Republica a chamada DCDP (Divisão de Censura e Diversões Públicas), possuía um instrumento policial para liberar ou não músicas passíveis de execução ao vivo, o que era praxe à época, pois, as apresentações dadas à ausência de gravações ainda eram ao vivo, e estas eram geralmente associadas a alguns gêneros musicais considerados escandalosos como o Maxixe e o Lundu.

Por volta de 1935 os sambistas se depararam com a primeira intervenção; a prefeitura carioca concorda em oficializar as nascentes escolas de samba, em troca, as escolas seriam obrigadas a ressaltar músicas que contassem sobre o Brasil e a nação. Assimilado com familiaridade pelos sambistas, esta prática, acabou criando os chamados sambas enredo que transformam o carnaval em grande desfile. As marchinhas ficaram então para blocos e salões de baile. No governo de 1937 a 1945, também comandado por Getúlio Vargas, foi criado o DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) que fazia o marketing do ditador, proibindo publicações de jornais, revistas, livros, radiodifusão e até samba enredo que não se adequasse ao regime.

O período da história do Brasil chamado de segunda República que vai de 1945 até o golpe de 1964, transcorre em clima de relativa tranqüilidade, quebrada apenas pela proibição de algumas composições de Juca Chaves (Presidente Bossa Nova, de 1961), referência explicita a Juscelino Kubischek; O Brasil vai a guerra, 1962, que ironizava a compra do porta-aviões Minas Gerais e uma canção de Carlos Lyra e Chico de Assis (Canção do subdesenvolvido, de 1962). No período da ditadura ficou claro que os militares estavam dispostos a não deixar passar nenhuma informação contrária ao regime e com isto criou-se à expressão através da metáfora. Autores como Chico Buarque e Paulo César Pinheiro, entre outros, especializaram-se na metáfora, o que significa querer dizer uma coisa e falar outra, algumas letras atestam a isto, como Cálice, Calabar e etc. Outros autores e artistas, ao contrário, foram totalmente suprimidos; é o caso do mineiro Sirlan, o sucesso Viva Zapátria de sua autoria, 1972, foi censurado, impedido de cantar e se apresentar em público, retirou-se da vida artística; o talentoso Sidney Miller, suicidou-se aos 35 anos em 1980; Taiguara assim como o artista anterior, participou de festivais fazendo muito sucesso até que sob pressão da ditadura foi morar em Londres, voltando ao Brasil, permaneceu no ostracismo morrendo esquecido em 1996, por último, o lendário paraibano Geraldo Vandré que abandonou a carreira e hoje, com mais de 60 anos, é um atuante advogado. Estes foram alguns exemplos de músicos e compositores que tiveram suas vidas artísticas arruinadas pela ditadura.
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Filmes sobre o assunto:
Agonia e êxtase. Direção Carol Reed. São Paulo: Fox, 1995. Fita de vídeo, 140 min.
O processo de pintura dos afrescos da capela Sistina por Michelangelo e seu tempestuoso relacionamento com o Papa Júlio II.
Arquitetura da destruição. Direção Peter Cohen. São Paulo: Cult filmes, 1992. 121 min. Neste documentário as artimanhas do Nazismo para desacreditar a arte moderna na Alemanha.
Crash, estranhos prazeres. Direção David Cronenberg. São Paulo: Columbia Tristar, 1996. Filme proibido em diversos paises por mostrar pessoas que tem prazer em acidentes de automóveis.

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Livros sobre o assunto:

NERET, Gilles. Miguel Ângelo 1475-1564. Koln: B. Taschen, 2000. 96 p., il. Por. A história completa do artista e notas explicativas sobre cenas “proibidas” do afresco.
GARCIA, Nelson Jahr. Sadismo, sedução e silencio. São Paulo: Loyola ,1990. 167 p. Por. Mostra o controle ideológico da propaganda no Brasil durante a ditadura militar.
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. (Org.). Minorias silenciadas : história da censura no Brasil. São Paulo : Edusp, 2002. 614 p. il. Prefacio de Renato Janine Ribeiro. Por. Ensaios e depoimentos de diversas personalidades reunidos sobre a censura à atividade intelectual no Brasil do período colonial aos nossos dias.
SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Ed.
SENAC São Paulo, 1999. Mostra de forma geral o que foi a censura no Brasil no período da Ditadura, definindo-a como um órgão executor de orientações da alta hierarquia militar. Ao relatar casos, alguns folclóricos, o autor aponta como funcionava a censura, identificando a influencia da policia Federal.


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