13 de dezembro de 2008


Fotos: Tatiane Cornetti/ Texto: Iomar Travaglin


A capela e a fonte de Santa Luzia
A Religiosidade e o cotidiano histórico em região central de São Paulo.

“Lucía, viene de luz. La luz es bella por sí y bella resulta a los ojos que la contemplan.”

Com estas palavras, Santiago de la Vorágine, no seu La leyenda Dorada, escrito em 1264, principia a contar a vida de uma das mais queridas e veneradas personalidades glorificadas pela Igreja: a jovem Lucía de Siracusa, popularmente conhecida como Santa Luzia. Seu nome foi associado à proteção aos olhos e a visão (Luzia deriva de luz) e venerado desde o século V através da tradição popular e oralidade. Sua história remonta no final do século IV quando foi vítima das perseguições religiosas perpetradas por Diocleseano contra os chamados cristãos. De família abastada, ao renegar um pretendente foi por ele denunciada, julgada e martirizada, antes, porém havia distribuído seus bens e consagrado seu corpo e virgindade a “serviço de Deus”. Seu martírio foi confirmado historicamente apenas em 1894 quando da descoberta de inscrição em seu túmulo embora tenha sido citada por Dante Alighieri na sua obra máxima A Divina Comédia atribuindo-lhe a “função da graça iluminadora”. Seu dia é comemorado em 13 de dezembro e inúmeros fiéis reúnem-se nas diversas igrejas que tem seu nome para agradecer graças recebidas.

Uma das igrejas, talvez a mais famosa, encontra-se no bairro da Liberdade, mais propriamente na Região Sé, Rua Tabatinguera 104. A igreja do Menino Jesus e de Santa Luzia foi construída e inaugurada no ano de 1901, como diz o frontispício acima da entrada a “espensas* da Exma. Senhora D. Anna Maria de Almeida Lorena Machado”, dona da chácara Tabatinguera, e é considerada uma pequena jóia do estilo Neogótico com belíssimas pinturas e requintado altar. Conta-se que Anna Maria quando em viagem a Europa sobreviveu a um terrível naufrágio e ao chegar à praia lamentou entre os seus pertences perdidos uma Imagem do Menino Jesus muito querida a quem rezou fervorosamente. Ao amanhecer viu surpresa a imagem boiando na praia onde estava e ali fez a promessa de ao voltar ao Brasil construir uma capela em honra dos santos de sua devoção, entre eles Santa Luzia. Os descendentes de Dona Anna Maria, após sua morte, continuaram com a manutenção até por volta de 1920 quando doaram a construção à Cúria Metropolitana onde diversos religiosos, respectivamente: as servas religiosas do Santíssimo Sacramento, os Padres Sacramentinos, Missionários de São Francisco de Salles e por último os padres da Missão Católica Espanhola cuidaram da conservação e manutenção do edifício. Após a saída da Missão Católica e seus cuidados a Capela ficou abandonada até que foi tombada pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo - COMPRESP em 12 de julho de 1995. Em seu interior concebido pelo arquiteto italiano Domingos Delpiano, podemos ver as pinturas executadas pelo pintor-decorador Orestes Sercelli com suas colunas decoradas e belíssimo céu de estrelas acima do altar.


Fachada da Capela do Menino Jesus e Santa Luzia 

Detalhe da fachada - Azulejo

Altar - Sta Luzia

Detalhe do céu de estrelas acima do altar

Detalhe da coluna decorada no altar 

Um dos padrões de ladrilho hidráulico do interior da capela 

Painel em azulejo (Sta. Luzia) na fachada da capela 


Próxima a citada igreja na região em que viveram os condes de Sarzedas, outro ponto de interesse histórico ligado a São Paulo e sob a mítica figura de Santa Luzia é a rua de mesmo nome onde havia uma fonte de águas. Segundo consta foi Dona Anna Maria que permitiu abrir ruas em suas terras no final do século dezenove e possivelmente a Rua Santa Luzia teve nesse momento sua gênese. No entanto a dita fonte é muito anterior a este período e foi palco de um fato pouco conhecido, mas que faz parte do cotidiano da cidade envolvendo uma ilustre moradora. Alberto Rangel, reconhecido biógrafo da paulistana Domitila de Castro Canto e Melo, conta em seu livro sobre a futura Marquesa de Santos, que foi neste lugar que Filício Pinto de Mendonça, seu marido, a flagrou em “colóquio intimo” com Francisco de Assis Lorena, à época futuro sétimo conde de Sarzedas, resultando em tentativa de assassinato do marido contra a esposa proferindo-lhe três facadas. Escândalos à parte, a fonte foi durante muito tempo ponto de encontro da população e suas águas eram associadas à Santa como curativas e milagrosas, idéia provavelmente difundida pela família Lorena que eram seus devotos, pois, como foi dito, a fonte era próxima à casa senhorial, dentro de sua propriedade. No entanto, estudo realizado em 1791 sobre as águas de São Paulo, pelo físico e astrônomo real, Bento Sanches D´Orta, classificou esta fonte como da melhor qualidade, com águas “mais puras, cristalinas e menos ácidas que outras fontes paulistanas” (Sant’anna, 2007, p. 54). Constatada a importância, onde poderíamos encontrar resquícios deste lugar perdido entre as recentes construções da região? O fato é que na Rua Santa Luzia existe uma bela casa, construída em 1924, cuja pequena placa apresenta o lugar onde provavelmente se encontrava a fonte, estancada em 1920 pelo serviço sanitário por ser considerada imprópria ao consumo. É interessante notar que nas crônicas antigas de São Paulo a fonte era ponto de encontro de pessoas de regiões distantes e se verdadeira a informação de Alberto Rangel, o fato acontecido em 1817 com a Marquesa de Santos demonstra a longevidade dessa fonte e seu valor histórico como marco tradicional de sociabilidade na futura metrópole.


Fachada da casa na Rua Sta. Luzia construída em 1924 

Detalhe da casa onde se encontra a fonte de Sta. Luzia 

Jardim da casa onde se encontra a fonte de Sta. Luzia 

Parede em pedra no jardim

Pequena placa onde provavelmente se encontrava a fonte
estancada em 1920 pelo serviço sanitário

Repensar lugares e encontrar marcos históricos é elemento indispensável para entendermos nossa cidade e consequentemente melhorá-la. Em uma época como a nossa cujo patrimônio histórico começa a ser pensado, com um atraso considerável em relação à Europa, a fonte de Santa Luzia assim como a região central com seus monumentos e pontos turísticos, apresenta um leque considerável de resgates no campo religioso, arquitetônico e na historia social como um todo que deveriam ser priorizados. Parodiando a idéia da luz que vem do nome de Santa Luzia quem acende a luz (conhecimento) é o primeiro a iluminar-se.

*Grafia original.
Texto: Iomar Travaglin - E-mail: itravaglin@yahoo.com.br
Fotos: Tatiane Cornetti - E-mail: tati_cornetti@yahoo.com.br

Livros consultados:VORAGINE, Santiago de La. La leyenda dorada. Madrid: Alianza Forma, 1996.
SANT´ANNA, Denise Benuzzi de. Cidade das águas. Usos de rios, córregos, bicas e chafarizes em São Paulo. São Paulo: Editora Senac, 2007.
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4 comentários:

Anônimo disse...

Mais um artigo com texto e fotos impecáveis. Um verdadeiro presente de natal para todo mundo que gosta dessa cidade.

Olha só que interessante: essa casa realmente foi a residência do grande arquiteto Felisberto Ranzini, autor do projeto do Mercado Municipal, entre outros. E foi pedido o tombamento do imóvel, provavelmente pelo próprio proprietário: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/upload/Pauta%20449_1229353012.pdf

Anônimo disse...

Tatiane,
É muito interessante conhecer, além da Capela de Santa Luzia, da bica, a própria Chácara de Dona Anna Machado, que englobava parte do bairro do Carmo e da Liberdade. Existem fotos da sede da chácara e da fonte no arquivo de negativos da Prefeitura.
E, realmente, a centenária Capela está uma lindeza só. Quem não a conhece, deve conhecê-la.

Anônimo disse...

A casa da Rua Santa Luzia é aberta a vistação?

Unknown disse...

Interessante texto. Sou tataraneto do artista e arquiteto Felisberto Ranzini e tenho essa casa como boa lembrança da minha infância. Quase todos os sábados (ou domingos, não me lembro), eu almoçava nessa casa com meus pais e avós. Não sabia que lá havia essa fonte que teria sido ponto de encontro, no passado. Gostaria de saber onde obteve essa informação.
Abraços,
Cássio Ranzini - krolmos@gmail.com