1 de novembro de 2010

Ligações perigosas (Dangerous Liaisons)

Direção de Stephen Frears.
Por Iomar Travaglin

Adaptação de livro epistolar de Pierre Choderlos de Lacros escrito em 1782. Conta a história de dois nobres, a Marquesa de Merteiul e o Conde de Valmont, obcecados por desejos de ódio e vingança.



Considerado um clássico este filme se tornou a versão mais famosa do livro, mas este inspirou outras produções em cinema e teatro.


Dangerous Laissons de Roger Vadim produzido em 1958, com Jeane Moreau e ambientada na época atual; O filme de Millos Forman quase simultâneo ao de Frears e a versão teen de 1998, Perversas Intenções, ambientada na aristocracia de Nova York nos tempos atuais.


A história também inspirou a produção teatral de Christopher Hampton em 1996, posteriormente adaptado para o filme de Stephen Frears e, anterior a este último, 1981, a clássica peça Quartett, do teatrólogo alemão Heiner Müller.


Em Quartett, o autor transporta os personagens centrais, Valmont e Isabelle de Merteuil para um lugar atemporal, porém moderno, com um texto ácido e mordaz. Nesta peça os dois personagens representam a si e aos outros personagens secundários do texto original, Cecile e Madame de Tourvel.


O filme de Stephen Frears, objeto desta apresentação, foi inteiramente filmado em construções históricas francesas como, por exemplo, o castelo de Vincennes, construído entre os séculos XIV e o XVII em Vincennes, subúrbio de Paris. Esta foi a primeira direção americana do diretor inglês recebendo indicações ao Oscar de melhor filme, diretor, atriz, atriz coadjuvante, trilha sonora, roteiro adaptado, figurino e direção de arte. Vencendo na categoria de figurino, roteiro adaptado e direção de arte. Cristopher Hampton além de escrever o roteiro de sua própria adaptação para o teatro, aqui ainda participa da produção. A Trilha sonora foi composta por George Fenton que inclui obras de Vivaldi, Bach, Handel e Glück. O figurino foi inteiramente transposto de quadros do século dezoito sendo que a personagem da marquesa usa cópia idêntica de vestido usado por Madame de Pompadour em retrato pintado por François Boucher no ano de 1750, abaixo:


Madame de Pompadour, 1750,
François Boucher

Cena do Filme

Composição dos personagens e adaptação de texto:
Coube primeiramente a Roger Vadim a difícil tarefa de transpor os sentimentos inseridos nas cartas do livro original tendo apenas como facilitador o idioma original em francês. Mas, Cristopher Hampton, com certeza, ao adaptar o texto para a peça de teatro em inglês formalizou e sintetizou diálogos pertinentes que conservam a força das imagens do filme de Frears. A carta LXXXI, por exemplo, apresenta a explicação da marquesa à sua atuação como mulher na sociedade francesa dentro dos quesitos da etiqueta e dissimulação próprios da época:


“...Entrando na sociedade em um tempo em que, solteira ainda, estava naturalmente voltada ao silêncio e a inação, aproveitei para observar e refletir. Enquanto me acreditavam estouvada ou distraída, dando, em verdade, pouca atenção ao que me procuravam dizer, muito prestava ao que procuravam esconder de mim. Esta útil curiosidade, ao mesmo tempo que servia para me instruir, ensinava-me a dissimular. Forçada muitas vezes a esconder os objetos de minha atenção aos olhares dos que me cercavam, procurei dirigir os meus à vontade. Consegui, desde então, tomar a meu bel-prazer esse ar distraído que louvastes tantas vêzes. Animada por esse primeiro êxito, procurei regular da mesma maneira os diversos movimentos de minha fisionomia. Se sentia alguma mágoa, aplicava-me a assumir um ar de serenidade, e até de alegria; levei o zêlo a ponto de provocar dores voluntárias, a fim de procurar durante esse tempo a expressão do prazer. Esforcei-me com mais cuidado e mais dificuldade em reprimir os sintomas de uma alegria inesperada. Foi assim que consegui sobre minha fisionomia esse poder que por vêzes vos espantou.


Era muito moça ainda e quase sem interêsse. Só tinha de meu o pensamento e indignava-me que pudessem arrebatar-mo ou surpreendê-lo contra minha vontade. De posse dessas primeiras armas, tentei servir-me delas; não satisfeita com não mais me deixar penetrar, diverti-me com mostrar-me sob diferentes formas; segura de meus gestos, controlei minhas palavras; regulei uns e outros de acordo com as circunstâncias e as minhas fantasias. A partir de então, minha maneira de pensar foi unicamente minha e só mostrei o que me era útil deixar transparecer.


Esse trabalho sobre mim mesma fixara minha atenção na expressão dos rostos e no caráter das fisionomias; e, com isto, ganhei êsse golpe de vista penetrante, em que, entretanto, a experiência me ensinou a não confiar inteiramente, mas que, em suma, raramente me enganou (...) A essas precauções, que chamo fundamentais, juntam-se mil outras, locais ou ocasionais, que a reflexão e o hábito fazem encontrar se necessário, demasiado minuciosas para que se exponham aqui, mas importantes na prática, e que vos cabe recolher no conjunto de minhas atitudes, se quiserdes chegar a conhecê-las. Mas pretender que me esforcei tanto para não colher os frutos de meus cuidados: que, depois de me ter elevado tão acima das outras mulheres, consinta em rastejar com elas entre a imprudência e a timidez; que, principalmente, possa temer um homem a ponto de só enxergar salvação na fuga? Não visconde, nunca. È preciso vencer ou morrer...”
De..., neste 20 de setembro de 17**.
(Lacros, 1782, p. 141)

Resumindo essa idéia da vida cotidiana no filme a virtude pode ser associada a simplicidade; a beleza e a virtude são presas da dissipação e por final e definitivamente, a “feiúra” esta para a maldade. Neste mundo de aparências, segundo Merteuil: “...o amor é causa certa de sofrimento..”.


Heiner Müller e Quarttet.
Choderlo de Lacros se limita colocar as cartas em ordem cronólogica dos acontecimentos. No livro ficamos sem saber o ano e na apresentação temos a notícia do autor, ou redator, que os nomes foram inventados e que podem nem ao menos terem existido os personagens, forma de negação irônica de que toda a aristocracia é má e age de um mesmo modo. Mas o fato é predominantemente reflexo geral da situação social do século XVIII com uma aristocracia decadente e sistema político as vésperas de uma revolução que, em dado momento, irá destruir este mundo de privilégios representados pelo clero e a nobreza.

Nas cartas descritas no livro encontramos a expressão de sentimentos ligados e dominados pelo poder e a dissimulação. Considerando o século XVIII como o século das luzes e dos grandes escritores iluministas, contrários aos conceitos medievais do Teocentrismo e Autoritarismo político, é clara uma sugestiva reação ao sistema através dos sentidos e da paixão desenfreada, que neste momento de forma simplista poderia ser associado a uma transgressão moral. Os sentimentos apresentados são movidos pelo desejo, no caso, aliados ao poder e desprezo das pessoas “superiores” às pessoas “fracas” ou “inferiores” sujeitas a condições morais e religiosas. Segundo Hobbes:

“...a felicidade é um contínuo progresso do desejo, de um objeto para outro, não sendo a obtenção do primeiro senão o caminho para a obtenção do segundo.”
( CHAUÍ, 1990. p.53)

O filme apresenta muito do desejo aliado ao luxo e a ociosidade. A ociosidade gera a insatisfação e a busca desenfreada de prazeres. Porém, mesmo na crueldade e na frieza, os personagens principais a seu modo, amam, e tem esse sentimento como sinal de fraqueza.

Em Quartett, Heiner Müller direciona o texto para a ótica do poder de forma visceral e atemporal. Esse duelo, com o intuito único de coibir o desejo alheio, acontece para garantir seus próprios prazeres. Mantendo somente os personagens de Valmont e Merteuil pensamos na questão dos sentimentos como uma coisa única e exclusiva dos dois personagens que amam, odeiam, riem e choram, ao contrário dos outros personagens. Estes apenas amam ou são passados para trás pelo arrogantes e cruéis aristocratas por sua inexperiência ou até mesmo falta de inteligência. Ao final sozinha e abandonada, Merteuil representa a decadência do poder e do antigo regime, em Quartett esta solidão é reforçada pela convicção de que não existe emoção, apenas o vazio.

No Brasil a montagem mais importante foi a de 1986 com o polêmico diretor Gerard Thomas, mas, recentemente, 2009, tivemos uma bela montagem com Beth Goulart e Guilherme Leme e a mais badalada; a produção francesa de 2010 presente no Brasil, com Bob Wilson, diretor, coreógrafo, e sonoplasta conhecido sobre suas produções de vanguarda e a atriz francesa Isabelle Hupert. Cabe aqui ressaltar que a obra de Müller muito se ajusta com a vanguarda de Wilson apresentando um cenário atemporal reforçado com cores, sons demoníacos e risadas descompassadas.

Segundo o libreto a história se passa entre a Revolução Francesa e uma Guerra mundial ratificando a peça com os moldes do poder e da destruição, presentes no texto do dramaturgo.

Sobre o texto de Heiner Mülller e a parceria com Bob Wilson recomendamos o artigo Heiner Müller, um espinho no olho de Irene Brietzske.

Estão disponiveis no www.youtub.com.br  imagens da peça Quartett, onde podemos ver o trabalho de Bob Wison, Huppert e Ariel Garcia Valdés como Valmond.



BIBLIOGRAFIA E VÍDEOS: 
BRIETZSKE, Irene (Autor). Heiner Müller: um espinho no olho. Cadernos de teatro, Rio de Janeiro, n. 136, p. 10-11, 1994. por.

FREARS, Stephen. Ligações Perigosas. São Paulo: Warner, 1996. 1 DVD (90 min): son., color.

KAUFMAN, Philip. Contos proibidos do Marquês de Sade. São Paulo: FOX, 2000. 1 DVD (124 min): son., color.

LACROS, Choderlos de. As ligações perigosas. São Paulo: Círculo do Livro, 1973.

NOVAES, Adauto. Libertinos libertários. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

NOVAES, Adauto. O desejo. Rio de Janeiro: Companhia das letras: 1990.

OLIVEIRA, Ruth Rohl Cerqueira de. O teatro de Heiner Müller: modernidade e pós-modernidade. São Paulo: Estação Liberdade, 1997. 185 p. il. (Estudos, 152).

As emoções no Romance de Lacros in: www.frb.br/ciente/Impressa/Psi/2004.2/episteme/1.ANDREI.pdf acesso em 24/07/2010

Um comentário:

Anônimo disse...

Análise palpitante nesta página, opiniôes como aqui vemos dão motivação aos que ler neste blog !!!
Dá mais deste blogue, a todos os teus leitores.