3 de julho de 2013

Terra Bruta

Por: Rodrigo Ruiz

John Ford devia um favor a Harry Cohn, o maioral da Colúmbia, um favor que ele pagou meio que à contragosto, diga-se de passagem. O velho Ford era temperamental. Mesmo contra sua vontade, assumiu a tarefa e acertou a mão em mais este western, digno de sua longa filmografia.

Trata-se de Terra Bruta (Two Rode Together -1961), uma página dramática da colonização do Oeste. Para Peter Bogdanovich, no livro que ele fez sobre John Ford, o diretor diz que não gostou do roteiro escrito pelo seu colaborador de longa data, Frank S. Nugent, baseado no romance Comanche Captives, de Will Cook.

Azar de John Ford e sorte nossa. Entretanto, os elementos fordianos estão ali: a construção da civilização norte-americana, a influência da religião nos usos e costumes, as dificuldades inerentes a essa sociedade em desenvolvimento,etc,etc.
Tudo ali traz a assinatura do mestre. Tudo ali aparenta uma perfeita sintonia com os westerns anteriores do diretor e apresenta um novo aspecto em contraposição àqueles: a visão mais humanista do índio.

No filme, um velho delegado (James Stewart) é contratado contra sua vontade (olha aí a semelhança curiosa com a situação de Ford em relação ao favorzinho devido a Harry Cohn) para auxiliar o exército na busca de mulheres e crianças brancas sequestradas pelos índios comanches.

O delegado Guthrie McCabe é interpretado pelo sempre ótimo James Stewart (em sua primeira atuação sob a batuta de Ford) que dá uma certa dose, bem equilibrada por sinal, de comicidade e drama à personagem. Stewart foi um daqueles raros talentos que podia ir de um extremo ao outro sem prejudicar sua atuação.


McCabe detesta a idéia de deixar a vida boa de delegado numa cidadezinha pacata onde ele detém 10% de todos os negócios ali, mas acaba aceitando como uma forma de fugir da influência da noiva mandona e intrometida, Madame Belle Aragon (Annelle Hayes).

Na jornada que ele irá empreender, McCabe terá a companhia de seu amigo o tenente Jim Gary, interpretado por Richard Widmark.


A química entre os dois atores está muito boa e fica evidente em uma das mais legais cenas do filme, quando ambos, seguindo viagem para o forte, sentam-se para descansar à beira de um riacho e empreendem um diálogo divertido. A câmera não se movimenta e fica durante alguns minutos vidrada em ambos.  É um cena bem simples, mas carregada de criatividade, da criatividade fordiana.

Aliás, bons diálogos não faltam ao filme, por exemplo nas cenas iniciais, quando o atendente do saloon, Jesus, aproximasse do delegado McCabe, que está sentado sonolento numa cadeira no alpendre, para levar-lhe uma cerveja, e lhe diz:

- Señor, a viúva Gomez deu à luz um menino esta manhã.
- Parabéns para a viúva Gomez!
-Mas, señor, faz mais de um ano que enterraram o señor Gomez no cemitério paroquial!
- Bem, tem mortos que não conseguem ficar num mesmo lugar.

E pensar que Ford torceu o nariz para o roteiro de Frank Nugent...
Terra Bruta traz referências do filme Rastros de Ódio, a principal é justamente a questão do rapto de mulheres e crianças pelos índios, fato esse que fora muito bem mostrado naquele grande western de 1956 estrelado por John Wayne e Natalie Wood.

Henry Brandon, que atuou em Rastros de Ódio como o chefe comanche Scar, aqui interpreta uma personagem real, o comanche Quanah Parker que era filho de Peta Nocona, um comanche e de Cinthia Ann Parker, mulher branca, raptada aos nove anos de idade pela tribo de Nocona.

O desespero das famílias dos colonos atingidas por esse flagelo é mostrado de modo sensível no filme. Homens e mulheres que se deslocam de grandes distâncias, gastando talvez todo o seu dinheiro para encontrar seus filhos e parentes seqüestrados.

Esse aspecto central do filme traz algumas cenas memoráveis, por exemplo, o jovem comanche Lobo Corredor, um menino branco que fora seqüestrado na infância, que é objeto da troca por rifles e levado por McCabe e Jim Gary para seus supostos pais, decorrendo disso uma tragédia e a esposa de um pregador fanático que vive há anos como uma das mulheres de um chefe índio e que, envergonhada por sua condição, pede a McCabe e Jim para que contem a sua família verdadeira que ela está morta.

Ford focaliza a questão da inculturação dos brancos obrigados a conviverem com os índios, tornando-se como eles. Eles acolhem os costumes indígenas, mas não se esquecem completamente de sua real identidade, ou ao menos, lembram-se de alguns detalhes de sua vida anterior.

A única mulher que retorna à convivência da sociedade branca é a mexicana Elena de La Madriaga, interpretada pela formosa atriz Linda Cristal. Seu retorno é amargo, pois a mesma é submetida à humilhante sessão de perguntas preconceituosas das mulheres dos oficiais do exército durante um baile. Ela perde o baile, mas ganha o coração do delegado.

O filme é o segundo dos quatro westerns de John Ford nos anos 60 e apesar de ser pouco valorizado pelo mestre, traz em si os elementos do revisionismo fordiano que modificaria sensivelmente sua obra naquele período, culminando com o seu derradeiro western, de dimensões épicas, Crepúsculo de Uma Raça (Cheyenne Autumn-1964).

Terra Bruta surgiu em uma fase de decadência para os filmes de faroeste que seriam atropelados pelo advento do spaghetti western na segunda metade daquela década, entretanto, ainda traz a essência e a beleza fascinantes do que se costumava considerar o cinema americano por excelência. E sem dúvida nenhuma, John Ford foi seu principal cultor.


Ficha Técnica:
Terra Bruta (Two Rode Together, 1961)
Direção: John Ford
Roteiro: Frank Nugent (adaptação do romance de Will Cook)
Elenco: James Stewart, Richard Widmark, Shirley Jones, Linda Cristal, Andy Devine.


Rodrigo Ruiz, paulistano de nascimento, desde 2001 mora em Itapira. Apaixonado por livros, trabalha em biblioteca e, nas horas livres, pesquisa sobre a Revolução Constitucionalista de 1932. Suas paixões são Cinema, História, Quadrinhos e Música.



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