10 de julho de 2011

O ogro e a fábula

Por: Rodrigo Ruiz

Era uma vez um inglês de rosto grotesco que resolveu contar uma fábula gótica.  Uma fábula gótica sobre as misérias humanas. Para tanto, ele precisou sair de cena como ator e voltar à ribalta como diretor. Uma única vez. O suficiente para imortalizar a fábula.

Esse inglês era Charles Laughton, o ator que deu vida ao disforme e doce Quasímodo na versão de 1939 para O Corcunda de Notre Dame. Laughton foi o Quasímodo do Cinema, um ator que, apesar da sua aparência lembrar um ogro, soube atribuir aos papéis que viveu a mesma agilidade e experiência que o famoso corcunda de Victor Hugo tinha para escalar as estruturas góticas da Catedral de Paris.

A fábula em questão trata-se da única incursão de Charles Laughton na direção de um filme.  O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter), produzido em 1955, foi recebido friamente pelo público e pela crítica, configurando-se num tremendo fracasso comercial, o que levou o novato diretor a desistir de uma carreira que poderia ser promissora.



A trama, uma adaptação do romance de David Grubb, pode muito bem ser vista como uma denúncia do fanatismo religioso e sua potencialização como instrumento de manipulação e violência. Um espectro que tem assombrado continuamente a sociedade atual.

Robert Mitchum em uma de suas melhores atuações é o psicopata Harry Powell, um pastor fanático que sai à caça de duas crianças, após desposar e matar sua mãe viúva, em busca do dinheiro que o pai delas, um marginal morto na prisão, havia roubado, escondendo a soma dentro de uma boneca. Sua interpretação de um escroque sem alma e sem escrúpulos é tão convincente que mete medo até no mais valente dos espectadores.


Atentem para o detalhe das mãos fechadas de Mitchum que trazem tatuadas as palavras amor e ódio, ou seja, duas serpentes disformes que destilam o veneno de sua maldade e dão a tônica do filme.



O filme de Laughton recria e mistura, simbolicamente, de forma macabra e sem os apelos tecnológicos do cinema fantástico atual, as fábulas de João e Maria e Chapéuzinho Vermelho, transpondo-as para o interior dos EUA durante a Grande Depressão, nos anos 30.



Obviamente, a bruxa e o lobo mau são a mesma pessoa no religioso fajuto encarnado por Robert Mitchum. De tão decantadas fábulas, o diretor extraiu o cerne, ou seja, o contraponto entre a inocência e a maldade, lançando sobre elas uma visão inquietante e perturbadora. Como ambas as personagens dos contos de fadas, o vilão usa de sua lábia para ganhar a confiança da viúva ingênua e de suas crias, preparando terreno para o golpe fatal.


O oportunismo e a hipocrisia religiosa que vicejam no caráter perverso da personagem de Mitchum muito se assemelham ao Elmer Gantry interpretado por Burt Lancaster no excelente filme de Richard Brooks, Entre Deus e o Pecado (Elmer Gantry-1960). O que difere, sem dúvida, é a forma como ambos se relacionam com o meio em que estão inseridos. Um se utiliza do medo e da violência para alcançar seus objetivos e o outro da manipulação através do discurso fundamentalista e com arroubos de um moralismo falso. Podemos arriscar o palpite de que a obra de Charles Laughton seja ainda uma metáfora para aqueles anos da caça às bruxas, ou seja, da patrulha anti-comunista promovida pelo senador Joseph McCarthy que revolveu a terra encantada de Hollywood, expondo algumas misérias humanas na Meca do Cinema, através do denuncismo incentivado.


A fotografia à cargo de Stanley Cortez (um veterano que trazia na bagagem a colaboração com Orson Welles em Cidadão Kane) revela uma grande influência do Expressionismo Alemão e, em determinados momentos, nos leva à imaginar o filme como um encantador teatro de sombras chinês, brincando com o claro e o escuro, fruto da harmonia perfeita entre o diretor e o fotógrafo em questão.


Cada cena, muito bem pensada e fotografada, nos oferece mais do que o próprio diretor queria para seu filme ou mesmo o que a United Artists lhe permitiu fazer: uma simples e despretenciosa produção B que nada custaria aos cofres da produtora se fracassasse comercialmente e que, se recebesse boa colhida do público, faria felizes tanto produtor quanto diretor.


O elenco traz, além de Robert Mitchum, Shelley Winters como a viúva enganada pelo pastor assassino, Lillian Gish, um dos principais nomes do cinema mudo, uma das poucas atrizes que não se deixaram intimidar pelo advento do som, e as duas crianças perseguidas pelo psicopata, o menino Billy Chapin e a menina Sally Jane Bruce.


O resultado desse filme genial seria sua inclusão em 2007 pela conceituada revista francesa Cahiers Du Cinèma no segundo lugar da pomposa lista dos “100 mais belos filmes do mundo”, perdendo a primeira colocação para Cidadão Kane (Citizen Kane-1941). Curiosamente, as duas películas foram fotografadas em preto e branco por Stanley Cortez.


O Mensageiro do Diabo transcende a categoria técnica de filme B, elevando-se à condição de obra-prima, desbaratando muitas produções pretenciosas e caras da época e afirmando-se como um momento único na História do Cinema.

Um comentário:

Ary Koeppl disse...

Uma análise bem estruturada e profunda de um filme desconhecido pela maioria, deu vontade de assistí-lo, principalmemnte porque o ator em questão sempre foi considerado um canastrão. Parabéns pela análise.