Era uma vez um inglês de rosto grotesco que resolveu contar uma fábula gótica. Uma fábula gótica sobre as misérias humanas. Para tanto, ele precisou sair de cena como ator e voltar à ribalta como diretor. Uma única vez. O suficiente para imortalizar a fábula.
Esse inglês era Charles Laughton, o ator que deu vida ao disforme e doce Quasímodo na versão de 1939 para O Corcunda de Notre Dame. Laughton foi o Quasímodo do Cinema, um ator que, apesar da sua aparência lembrar um ogro, soube atribuir aos papéis que viveu a mesma agilidade e experiência que o famoso corcunda de Victor Hugo tinha para escalar as estruturas góticas da Catedral de Paris.
A fábula em questão trata-se da única incursão de Charles Laughton na direção de um filme. O Mensageiro do Diabo (The Night of the Hunter), produzido em 1955, foi recebido friamente pelo público e pela crítica, configurando-se num tremendo fracasso comercial, o que levou o novato diretor a desistir de uma carreira que poderia ser promissora.
A trama, uma adaptação do romance de David Grubb, pode muito bem ser vista como uma denúncia do fanatismo religioso e sua potencialização como instrumento de manipulação e violência. Um espectro que tem assombrado continuamente a sociedade atual.
Robert Mitchum em uma de suas melhores atuações é o psicopata Harry Powell, um pastor fanático que sai à caça de duas crianças, após desposar e matar sua mãe viúva, em busca do dinheiro que o pai delas, um marginal morto na prisão, havia roubado, escondendo a soma dentro de uma boneca. Sua interpretação de um escroque sem alma e sem escrúpulos é tão convincente que mete medo até no mais valente dos espectadores.
Atentem para o detalhe das mãos fechadas de Mitchum que trazem tatuadas as palavras amor e ódio, ou seja, duas serpentes disformes que destilam o veneno de sua maldade e dão a tônica do filme.
O filme de Laughton recria e mistura, simbolicamente, de forma macabra e sem os apelos tecnológicos do cinema fantástico atual, as fábulas de João e Maria e Chapéuzinho Vermelho, transpondo-as para o interior dos EUA durante a Grande Depressão, nos anos 30.
Obviamente, a bruxa e o lobo mau são a mesma pessoa no religioso fajuto encarnado por Robert Mitchum. De tão decantadas fábulas, o diretor extraiu o cerne, ou seja, o contraponto entre a inocência e a maldade, lançando sobre elas uma visão inquietante e perturbadora. Como ambas as personagens dos contos de fadas, o vilão usa de sua lábia para ganhar a confiança da viúva ingênua e de suas crias, preparando terreno para o golpe fatal.
O oportunismo e a hipocrisia religiosa que vicejam no caráter perverso da personagem de Mitchum muito se assemelham ao Elmer Gantry interpretado por Burt Lancaster no excelente filme de Richard Brooks, Entre Deus e o Pecado (Elmer Gantry-1960). O que difere, sem dúvida, é a forma como ambos se relacionam com o meio em que estão inseridos. Um se utiliza do medo e da violência para alcançar seus objetivos e o outro da manipulação através do discurso fundamentalista e com arroubos de um moralismo falso. Podemos arriscar o palpite de que a obra de Charles Laughton seja ainda uma metáfora para aqueles anos da caça às bruxas, ou seja, da patrulha anti-comunista promovida pelo senador Joseph McCarthy que revolveu a terra encantada de Hollywood, expondo algumas misérias humanas na Meca do Cinema, através do denuncismo incentivado.
A fotografia à cargo de Stanley Cortez (um veterano que trazia na bagagem a colaboração com Orson Welles em Cidadão Kane) revela uma grande influência do Expressionismo Alemão e, em determinados momentos, nos leva à imaginar o filme como um encantador teatro de sombras chinês, brincando com o claro e o escuro, fruto da harmonia perfeita entre o diretor e o fotógrafo em questão.
Cada cena, muito bem pensada e fotografada, nos oferece mais do que o próprio diretor queria para seu filme ou mesmo o que a United Artists lhe permitiu fazer: uma simples e despretenciosa produção B que nada custaria aos cofres da produtora se fracassasse comercialmente e que, se recebesse boa colhida do público, faria felizes tanto produtor quanto diretor.
O elenco traz, além de Robert Mitchum, Shelley Winters como a viúva enganada pelo pastor assassino, Lillian Gish, um dos principais nomes do cinema mudo, uma das poucas atrizes que não se deixaram intimidar pelo advento do som, e as duas crianças perseguidas pelo psicopata, o menino Billy Chapin e a menina Sally Jane Bruce.
O resultado desse filme genial seria sua inclusão em 2007 pela conceituada revista francesa Cahiers Du Cinèma no segundo lugar da pomposa lista dos “100 mais belos filmes do mundo”, perdendo a primeira colocação para Cidadão Kane (Citizen Kane-1941). Curiosamente, as duas películas foram fotografadas em preto e branco por Stanley Cortez.
O Mensageiro do Diabo transcende a categoria técnica de filme B, elevando-se à condição de obra-prima, desbaratando muitas produções pretenciosas e caras da época e afirmando-se como um momento único na História do Cinema.
Um comentário:
Uma análise bem estruturada e profunda de um filme desconhecido pela maioria, deu vontade de assistí-lo, principalmemnte porque o ator em questão sempre foi considerado um canastrão. Parabéns pela análise.
Postar um comentário